quarta-feira, 11 de julho de 2012

Na era dos golpes travestidos e das democracias de aparência


Como sabem meus interlocutores mais próximos, sou não raro considerado um apóstata por descrer em absoluto do moderno conceito de democracia, fundado no pressuposto dogmático de 'uma cabeça, um voto'. Mas conservo, por outro lado 
— como estudioso das ciências jurídicas e tendo por ofício a atividade pública —, grande apreço por aquilo que se convencionou chamar, em acepção lata, Estado de Direito.

Embora seja essa uma discussão a que não pretendo dar curso neste momento, refiro-me a ela a propósito do imbróglio diplomático em que se encontra envolvida a comunidade
sul-americana de nações deflagrada que foi a mais grave crise já experimentada pelo Mercosul nos seus 20 anos existência  em conseqüência do golpe de Estado, travestido de processo de impeachment, havido no Paraguai em junho último.

A esse respeito tenho escrito aqui e ali, em síntese, o seguinte:


Creio que o princípio da autodeterminação dos povos permite ao paraguaio aceitar como legítimos os golpes de Estado que bem entender, tal como aquele havido no último dia 22 de junho contra o governo de Fernando Lugo.

Todavia, não se pode exigir do resto do mundo que, à luz da razão, reconheça esse tipo de ação, praticada ao arrepio dos mais elementares princípios do Direito — a começar do imperativo due process of law —, como insertos em um contexto de suposta normalidade democrática.

Se as cláusulas democráticas constantes na legislação comunitária local basicamente o Protocolo de Ushuaia, com reflexos noutros acordos firmados entre os países da região têm algum sentido para além da mera formulação retórica, penso que Mercosul e Unasul agiram corretamente ao suspender o Paraguai, ora sob mal dissimulado regime de exceção.

Aliás, somente negam essa cristalina realidade aqueles que à beira do risível, tão frágeis, inconsistentes e mesmo absurdos os argumentos insistem em analisar a situação, de forma facciosa, como mera contenda ideológica e não como um problema a ser enfrentado em perspectiva político-jurídico-institucional.

Vale dizer, é a mera e chã rixa ideológica, quando não os interesses obscuros e inconfessáveis de sempre, que conduz a posicionamentos do tipo "se não gosto de governos de esquerda, de tudo devo fazer para justificar golpes da direita", e vice-versa.

Se algum desafio adicional à lógica e à razão se põe provavelmente em contraponto, mas sob a mesma inspiração do sectarismo ideológico , consiste, isso sim, na imediatamente subseqüente admissão ao Mercosul da Venezuela, há tempos igualmente submetida a indisfarçável ditadura, a que agora se ombreia o Paraguai na categoria das, digamos, 'democracias de aparência' da América do Sul.

Assim, suspender um e admitir outro país, praticamente ao mesmo tempo e com evidentes conexões recíprocas no âmbito do Mercosul, constitui o mais incoerente e mesmo ridículo — e, por isso mesmo, desmoralizante conjunto de contraditórias medidas já adotadas pelo bloco.

Como se sabe, porém, razão, coerência e seriedade não são, nem de longe, os critérios que pautam fundamentalmente o comportamento da comunidade internacional, seja no centro, seja nestas franjas da civilização.







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